terça-feira, 5 de junho de 2012

Eu sei que a gente se acostuma...

Nesses dias de chuva paramos mais vezes para pensar e lendo um livro belíssimo de Marina Colassanti eis um trecho:


       Eu sei que a gente acostuma. Mas não devia.
       A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
       A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora. [...]
     
      A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana [...]
     
     A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que as poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.

Um comentário:

  1. Bom dia Lilian, seja bem-inda à Casa de Retalhos.

    Qdo eu morava no Brasil eu li muito as crônicas e textos de MC, uma mulher brilhante, eu acho. Gostei muito de ter a chance de ler esses trechos de um livro dela.

    Abraços, e um ótimo dia pra você.

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